segunda-feira, 23 de julho de 2012

O pornô e o drama real de Linda Lovelace


O pornô e o drama real de Linda Lovelace

Nunca houve mulher como Linda Lovelace. Que fizesse tanto pela pornografia e que a combatesse tanto. Ela morreu aos 53 anos, vítima de ferimentos causados por um acidente de carro ocorrido no dia 3 de abril de 2002, em Denver.

A fama de Linda Lovelace nasceu e praticamente sumiu com um filme que fez em 1972, 'Garganta Profunda' (Deep Throat). Foi um dos primeiros filmes pornográficos de longa-metragem, tinha 62 minutos e custou US$ 30 mil. Linda sempre disse que não viu um tostão desse dinheiro, muito menos dos US$ 600 milhões que rendeu, segundo ela revelou no livro autobiográfico 'Out of Bondage', para uma família mafiosa. 'Deep Throat' e Linda Lovelace se tornaram uma espécie de sinônimo de pornografia e renderam dezenas de livros e pelo menos 18 músicas. Na época do caso Watergate, os repórteres do jornal 'Washington Post', Bob Woodward e Carl Bernstein, chamaram sua fonte secreta de Deep Throat.

No filme, Linda, aos 23 anos, surge bem bonita, mas com um corpo magro e um tanto anguloso, a anos-luz das medidas portentosas das modelos de 'Playboy', com seus seios enormes, preferência nacional dos homens americanos. Mas o seu talento, descrito pelo crítico Vincent Canby do 'New York Times' como mais relacionado com a engenharia física do que com os prazeres multifacetados do sexo, era o de ter, como era explicado na tela, o clitóris na garganta, fazendo com que ela só tivesse orgasmos fazendo sexo oral.

Ela insistiu depois que só fez o filme porque seu marido na época, Chuck Traymor, ameaçou-a. Na sua autobiografia de 1980, escreveu: "Soube como era sentir uma arma nas minhas costas e ouvi o clique do gatilho, nunca sabendo se viria uma bala de verdade".

Verdade é uma palavra absolutamente ambígua na história de Linda Lovelace, aliás Linda Boreman, nascida a 10 de janeiro de 1949, no Bronx, em Nova York. Não faltam boatos e lendas sobre ela, ainda mais amparados em cinco autobiografias, que se contradizem. 'O Diário Íntimo de Linda Lovelace' e 'Inside Linda Lovelace', em que ela fazia afirmações como "eu vivo para o sexo", foram denunciadas por ela, mais tarde, como sendo invenções fabricadas por ghost writers.

O que é geralmente aceito é que, nascida Linda Boreman, era filha de um policial nova-iorquino e de uma vendedora de tupperware. Teve uma infância difícil e infeliz. Depois de sair da escola, teria trabalhado numa loja de roupas e como fotógrafa. Em 1970, conheceu Charles 'Chuck' Traynor, um pornógrafo que fazia 'loops', como eram chamados os filmes pornô curtos em 8 mm, que eram vendidos e exibidos ilegalmente. Linda apareceu em pelo menos oito deles, o mais famoso sendo um em que ela transava com um cachorro.

Eventualmente, ela e Traynor se casaram.

Aí, fizeram 'Garganta Profunda'. O filme chegou a ter um status de cult, foi elogiado por alguns críticos, seu humor foi destacado e o cinema World, perto da Times Square, que o exibia, por algum tempo foi um lugar da moda da sociedade nova-iorquina.

Linda Lovelace apareceu em mais três filmes, o primeiro deles o inevitável 'Garganta Profunda Parte 2', de 1974. 'Linda Lovelace Encontra Miss Jones', de 1975, colocava frente a frente, às vezes uma sobre a outra, a estrela pornô e uma sua rival na época, Georgina Spelvin, que fizera 'O Diabo em Miss Jones', em que a citada e entusiasmada personagem ficava literalmente com o diabo no corpo. O terceiro filme, um fracasso que enterrou de vez as esperanças de Linda fazer uma carreira cinematográfica, é de 1975, 'Linda Lovelace for President', que tinha pecados capitais para um filme pornô: era uma comédia e limitava-se à classificação softcore, não tinha nada explícito.

Mas a aceitação de 'Garganta Profunda' não foi unânime. O filme, por exemplo, só conseguiu certificado de exibição na Inglaterra em 2000. Em vários Estados americanos o filme foi proibido por obscenidade. Um juiz de Nova York, Joe Tyler, em 1.º de março de 1973, chegou a dizer que o filme era um abismo de decadência e que "essa garganta deve ser cortada". Em 1991, entrevistado pela revista 'People', o juiz Tyler, então com 71 anos, disse:

"Se eu fosse dar essa sentença hoje, seria chamado de louco. Filmes e TV mudaram completamente sua perspectiva com relação à forma humana". Mas, então, condenou o cinema World a pagar US$ 3 milhões de multa.

Como nunca houve apelação para mudar a sentença, até hoje é proibido exibir 'Garganta Profunda' em cinemas de Nova York, embora possa ser alugado em qualquer locadora de vídeo.

Depois de se divorciar de Traynor (que se casou com outra superstar pornô, a loira Marilyn Chambers), Linda Lovelace começou a denunciar que foi forçada a fazer os filmes pelo ex. Ao mesmo tempo, passou a morar em hotéis, a aparecer em Las Vegas e Londres, vestida de forma extravagante, tentando provocar escândalo. Conseguiu fazer um certo barulho, mas ficou nisso.

Depois, ela se casou com um pedreiro, Larry Marchiano, em 1976.

Nos anos 80, Linda passou a testemunhar contra os perigos da pornografia diante do Congresso, tribunais e conselhos municipais. Tornou-se também um símbolo de escritoras feministas como Gloria Steinem, como uma mulher explorada pelo sexismo masculino. Mas ser um símbolo não pagava contas e o casal muitas vezes teve de recorrer ao seguro social. Ela escreveu nova autobiografia, 'Ordeal' e, num golpe de publicidade, só a publicou depois de passar por um detetor de mentiras. Mas ninguém estava muito interessado.

Em 1987, ela fez um transplante de fígado numa operação de 15 horas; Linda descobriu o câncer quando foi fazer uma mastectomia - então adiada - por causa das injeções de silicone que Traynor a fizera tomar nos seios. As contas de hospital liquidaram com as finanças do casal e eles se divorciaram em 1996. Mudaram-se, antes, para Denver. Ela ganhava algum dinheiro com palestras antipornografia, emendando isso com empregos temporários como vendedora. Ela sempre tinha de sair deles por causa de dores nas pernas causadas por varizes.

Há quatro anos, trabalhava como vendedora numa empresa de informática, ganhando pouco menos de US$ 10 por hora. Na última entrevista de TV que deu, ela mal conseguiu falar e, em 2001, um estudioso da cultura pop, Eric Danville, levou-a para ver 'Garganta Profunda'. Foi a primeira vez que ela viu o filme do começo ao fim. 'Não sei o que vêem nisso', foi o único comentário de Linda.

Hoje, a pornografia fora da Internet se tornou obsoleta e nada rentável para seus produtores, incluindo até recentes êxitos como a revista 'Hustler', que investe pesadamente agora em vários sites especializados na Web. Revistas que exploravam o sexo, mas de modo menos explícito, como 'Playboy' e 'Penthouse', acumularam quedas de vendagem e publicidade. Diriam os mais fanáticos adversários da pornografia, que a morte de Linda foi um sinal.

 Fonte: O pornô e o drama real de Linda Lovelace ,Geraldo Galvão Ferraz, Jornal da Tarde,São Paulo,28 de abril de 2002


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